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VIDA E MORTE DE @EX-MISS FEBEM

 

A polêmica personagem criada pela artista carioca ALETA VALENTE usava as selfies, o exibicionismo e a ironia para afrontar os limites da privacidade e discutir as formas de exposição do corpo feminino nas redes sociais.

 

Por IVANA BENTES

 

Quanta perturbação o corpo de uma mulher ainda pode causar? A contínua exposição da intimidade no ambiente de “privacidade pública” das redes sociais tem gerado reações violentas, dirigidas muitas vezes contra a autonomia feminina. Essas reações se contrapõem têm ao discurso que se vale da estética do escândalo, do erotismo, do humor, da inversão, do choque e do consumo para enfrentar tabus e inventar formas de expressar a intimidade das mulheres. 

Com uma foto intitulada “O patriarcado está vazando, a misoginia está vazando. Não seremos censurados” -- frase emprestada à artista indiana Rupi Kaur --, a personagem Ex-Miss Febem, criada por Aleta Valente no Instagram, produziu um turbilhão de reações ao encenar uma exibição pública da intimidade. A imagem frontal mostra o sangue menstrual que marca a calça imaculadamente branca, enquanto Ex-Miss Febem, em um esforço contorcionista, passa a perna por trás da cabeça e deixa cair suas trança. A personagem se esforça para posar e olhar para a câmera ao mesmo tempo, em um cenário sem glamour, com um varal encostado na parede manchada e um pedaço de papel jogado no chão de cimento.

Não há nada a esconder, diz a imagem, que tem como objetivo exibir algo socialmente ocultado -- o fluxo menstrual, do qual não há imagem pública.

A fotografia de Ex-Miss Febem foi extraída do contexto original e republicada no Facebook, sem a ciência da autora, no perfil antifeminista “Moça, não sou obrigada a ser feminista”, o que gerou um fluxo de insultos, discursos misóginos e reprovações, numa espécie de compêndio dos discursos de ódio que incidem sobre as mulheres – e quase todos eles proferidos por mulheres. Os comentários fornecem um catálogo da opinião corrente sobre tudo o que se pode ou não falar sobre elas: sexualidade, desejo, menstruação, pelos, gravidez, aborto, maternidade, bunda, vagina e fluxos.

 

ESTÉTICA DO ESCÂNDALO

Ex-Miss Febem nasceu em janeiro de 2015 e morreu em janeiro de 2017, quando seu perfil foi apagado pelo Instagram após denúncias. O projeto político, ativista e artístico, censurado por violar os termos de uso da rede social – que proíbe a nudez, especialmente a feminina –, utiliza a autoironia, o deboche e a transgressão para produzir um curto-circuito nos discursos sobre o corpo da mulher e conquistar lovers e haters, adoradores e detratores. “Meu nome é Aleta Valente, sou artista visual, instagrammer, mãe solteira, feminista, suburbana. Ex-Miss Febem é um personagem, performer, performance, dividimos o mesmo corpo. Ex-Miss Febem nunca passou pela antiga Fundação Estadual do Bem Estar do Menor: o apelido vem da música ‘Kátia Flávia’, hit de Fausto Fawcett.”

Usando o corpo e sua imagem como meio de expressão, as séries fotográficas de Valente debocham da autorrepresentação. A superexposição, o escândalo e a subversão são armas contra a censura, a vergonha, a vulnerabilidade e a exibição dos corpos como mercadoria. 

A sedução e o erotismo “fora de lugar” questionam o consumo público do corpo feminino. Os comentários à imagem do fluxo menstrual no perfil antifeminista se atêm à literalidade da foto, a sua crueza, e desqualificam quem fala por meio dela, ignorando os aspectos políticos e estéticos, e reforçando discursos misóginos e patriarcais: falam de nojo e repulsa, da visão “repugnante” do sangue e do “cheiro de açougue” que a imagem, considerada “traumática”, supostamente exala. Os haters se valem do discurso higienista e acusam a personagem de ser “imunda, sebosa, repugnante, relaxada”. 

Chovem associações ao “feminismo radical” e às “feminazis”, vistas como mulheres problemáticas, loucas, doentes mentais, que não parecem mulheres, destruidoras da família, pragas malditas, blasfemadoras, carentes de sexo, e toda uma série de clichês. Acusa-se a imagem de expor a privacidade e a intimidade, produzindo uma “vergonha de ser mulher”, o que apenas reafirma a potência transgressora da foto. Os poucos comentários positivos aludem a questões estéticas e à disputa política: “sangram na arte para não sangrar na vida. 

 

MADE IN BANGU 

No perfil de Ex-Miss Febem no Instagram, os seguidores encorajavam, admiravam e comemoravam cada publicação. São seus lovers. Nas redes sociais, pode-se falar tanto para os nichos dos que frequentam galerias de arte e centros culturais, e partilham valores e repertórios, como para os “desorganizados”, que reagem com violência à quebra dos códigos tradicionais, sejam eles estéticos ou de comportamento. 

As redes produzem um circuito difuso de consumo de imagens. Valente joga com esses deslocamentos quando tatua na bunda um irônico “Made in Bangu”, paródia das marcas que indicam a origem de um produto. O circuito das redes, uma espécie de esgoto público de imagens e discursos, é também uma nova economia, cuja moeda são os likes, os comentários e a quantidade de seguidores. Trata-se uma nova lógica da cultura pop, massiva, mas não necessariamente de massa, fechada em nichos e criadora de espaços onde havia apenas comunicação e interação instantâneas. Os usuários das redes sociais realizam experiências em tempo real com imagens, memes, vídeos, fotografias e selfies, desencadeando processos de construção da identidade e da opinião. A livre circulação no ambiente das redes e a lógica viralizante fazem supor, parodiando Andy Warhol, que todos terão seus 15 minutos de fama, mas também seus 15 minutos de linchamento virtual.

Algumas imagens de Ex-Miss Febem chocam pela eleição do objeto de prazer e pelo caráter público do ato registrado, como a foto em que ela está no ônibus, de óculos escuros, turbante e fones de ouvido, tocando os pelos da axila com a língua de forma paradoxalmente sedutora e provocadora, como os animais que se lambem e se amam. Outras parecem ser manifestos, como a cena frontal de um par de pernas abertas mostrando os pelos pubianos que saem pelas beiradas do short com a hashtag #freepentelhos, ou a vagina escancarada e melada de sangue que remete a A origem do mundo (1866), de Gustave Courbet, acompanhada do texto: “Continua sendo uma imagem polêmica e tabu. Nada mudou, ou pouco”. “Louco pensar que eu nunca vi a minha própria vagina quando menstruo”, diz o comentário de uma mulher.

Outra selfie-manifesto, intitulada “Abadá do aborto”, mostra Ex-Miss Febem em poses sensuais vestindo uma peruca rosa, óculos escuros e uma camiseta estampada com o nome Cytotec, medicamento usado como abortivo. A imagem alude à proibição e ao tabu que transforma mulheres pobres em vítimas e criminosas.

 

MY SELFIES

Ex-Miss Febem faz do nu feminino, da exposição do sangue, dos fluxos e do corpo nas suas formas mais cruas um erotismo deslocado e paródico, compondo cenas com caras, bocas e poses de sensualidade convencional, do tipo que é reproduzida aos milhões nas selfies do mundo todo. 

Em 2013, "selfie" foi eleita a palavra do ano pelo Dicionário Oxford. Em 2015, estimava-se que mais de 1 milhão de selfies eram tiradas todos os dias. Seria equivocado, no entanto, tratar o fenômeno apenas como efeito de uma cultura do narcisismo: as selfies fazem parte de uma cultura da autonarração e de uma estética massiva produzida nas interações das redes sociais. 

O importante não é o assunto da foto, mas o ato de produzi-la: diante de obras de arte e de paisagens; em grupos, em situações de risco e na intimidade; selfies de fãs, selfies políticas, selfies paródicas; em festas ou enterros. A imagem torna-se uma forma de legitimação. Das fotos de jovens fazendo caras e bocas no espelho do banheiro, passamos para o uso das selfies em amplos processos de sociabilidade, como forma de indicar pertencimento e de construir reputação, de ativismo e posicionamento político. 

 

EROTISMO FORA DE LUGAR

Ex-Miss Febem, essa “sereia de Bangu”, como diz um comentário afetuoso, utiliza o bairro em que vive, na Zona Oeste carioca, para produzir uma geografia afetiva e política do subúrbio. Seu trabalho amplifica o poder das selfies ao exibir os territórios invisíveis da cidade e seus anticartões-postais: as ruas, lojas, vitrines e propagandas do comércio de Bangu, os terrenos baldios, praças, quintais, lajes, entulhos, demolições, quartos desarrumados, banheiros, cozinhas, mesas de trabalho em desordem cotidiana. 

O contraste é uma estratégia recorrente em seu trabalho: uma mulher jovem, sedutora e sexy exibe-se em poses glamorosas e provocantes diante de um cenário de pobreza, como na série Eu e Claudinho, em que posa sobre capôs de carros detonados ao lado de um homem; ou quando encaixa uma marmita de arroz e feijão entre as pernas; ou esconde os seios com dois pedaços de carne bovina, provocando estranhamento e neutralizando o erotismo. A foto com a legenda em falso latim “Equilibrium sobre Entulhum” resume a estratégia: uma bunda de biquíni, voltada para o céu, se exibe em meio ao lixo. 

Os autorretratos de Ex-Miss Febem ecoam o ativismo da artista indiana Rupi Kaur, autora da série Menstruação, que inclui a imagem de uma mulher deitada de lado e de costas, vestindo um moletom de ginástica com uma pequena mancha de sangue. Uma imagem que naturaliza, pela pose, pelo enquadramento e pela estética, o fato de que as mulheres menstruam, mas que produziu uma reação igualmente violenta e foi removida pelo Instagram. A estratégia de Kaur, no entanto, é distinta, sem o erotismo e o enfrentamento da série de Valente. Buscando naturalidade ou escândalo, essas imagens parecem “inconsumíveis” e precisam do discurso estético ou ativista para se legitimarem.

O conjunto de imagens produzidas por Ex-Miss Febem forma uma enciclopédia subversiva e perturbadora, que trata de questões como autolegitimação, autoexposição, gênero, consumo, glamour, pobreza, sexualidade, sedução, sexismo, patriarcalismo, feminismo e pós-feminismo, maternidade, menstruação, aborto, masturbação e marginalidade. Essas imagens também marcam a emergência de novos sujeitos do discurso: os “pobre-stars", minorias ligadas à cultura pop e popular brasileira, irônica e iconoclasta, inspiradas por assuntos tão diversos quanto o cinema marginal e os memes de internet. Ligadas também às figuras do feminismo pop, como Tati Quebra Barraco, Luz Del Fuego, Helena Ignez, Márcia X. e Cindy Sherman.

Não é preciso repertório culto ou cult para perceber o impacto das imagens de Valente, nem a autoironia, o sarcasmo e o humor que, de certa forma, neutralizam os discursos de ódio. Ainda assim, a violência e a misoginia de alguns comentários indicam o caráter perturbador e chocante do trabalho. 

 

ALETHEIA E OS FLUXOS  

Aleta lembra aletheia, palavra grega que significa “verdade, desvelamento, jogo de aparição e ocultação”. O que pode realmente ser exibido nos novos regimes de privacidade pública? Que fluxos? “Isto respira, isto esquenta, isto come. Isto caga, isto fode”, dizem os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari em O anti-Édipo (1972) sobre as máquinas desejantes que somos. E citam o escritor Henry Miller para falar dos fluxos barrados e interditados pelo capitalismo: “Amo tudo o que corre, mesmo o fluxo menstrual que arrasta os ovos não fecundados. [...] Fluxo de cabelo, fluxo de saliva, fluxo de esperma, de merda ou de mijo, que são produzidos por objetos parciais, sempre cortados por outros objetos parciais que, por sua vez, produzem outros fluxos, que são ainda recortados por outros objetos parciais.” “O problema do socius sempre foi este”, concluem, “codificar os fluxos do desejo, inscrevê-los, registrá-los, fazer com que nenhum fluxo escorra, sem ser tampado, canalizado, regulado.” Quando as imagens apresentam esses fluxos em sua crueza e potência disruptiva, implodem os códigos e fazem vazar todos os discursos de contenção e interdição. 

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